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Para Defender a Ciência, Precisamos Olhar no Espelho: Uma Autocrítica Necessária

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Vivemos tempos em que a expressão "ataque à ciência" se tornou um clichê. Em noticiários, debates e redes sociais, a narrativa dominante retrata uma ciência pura e objetiva sob cerco de forças irracionais, como a desinformação e o negacionismo. A resposta padrão, quase um reflexo, é pedir uma defesa vigorosa da ciência, mais divulgação e mais combate aos "inimigos".

Essa reação, embora bem-intencionada, é perigosamente incompleta. A tese que quero defender aqui é que a vulnerabilidade da ciência não se deve apenas a ataques externos. Ela também é fruto de fraturas internas, de mudanças profundas na forma como a ciência é praticada, ensinada e comunicada nas últimas décadas. Portanto, para defender a ciência de verdade, precisamos primeiro ter a coragem de olhar no espelho.


A Fratura do Saber: Quando o Cientista Vira um Técnico


Uma das fraturas mais profundas é a separação da ciência de suas raízes humanísticas e filosóficas. A formação de um cientista hoje raramente inclui uma base sólida em epistemologia (a filosofia do conhecimento), ética ou mesmo retórica. O resultado é a ascensão do "cientista-técnico": um especialista brilhante em sua área ultrassofisticada, mas muitas vezes incapaz de situar seu trabalho em um contexto mais amplo ou de dialogar sobre suas implicações sociais.

Essa tendência é agravada pela hiperespecialização. O conhecimento se torna tão vasto que o horizonte de um pesquisador pode ser um único gene ou uma única equação. Perdemos a capacidade de síntese, de construir pontes entre as disciplinas, e a ciência, que deveria ser um corpo de conhecimento integrado, corre o risco de se tornar um arquipélago de ilhas de dados desconexas.


A ‘Indústria do Conhecimento’ e a Tirania das Métricas


Some-se a isso a transformação da pesquisa em uma verdadeira "indústria do conhecimento". A lógica do "publicar ou perecer" dita o ritmo, e o sucesso é medido não pela profundidade das ideias, mas por métricas de produtividade e fator de impacto. O tempo, ingrediente essencial para a maturação intelectual e para as grandes descobertas, foi substituído pela pressão por resultados incrementais e rápidos.

O resultado? Uma ciência que corre o risco de se tornar repetitiva, avessa ao risco e cada vez mais distante da imagem de grande aventura intelectual que um dia a legitimou perante o público. Não é por acaso que muitos analistas apontam para uma aparente "seca" de grandes revoluções científicas nas últimas décadas.


O Resultado: Desconfiança e Polarização


Essas fraturas internas não ficam contidas nos laboratórios. Elas transbordam para a sociedade de formas tóxicas. A pandemia de COVID-19 foi um exemplo doloroso. A comunicação científica foi frequentemente percebida como arrogante e dogmática, um rolo compressor que não deixava espaço para dúvidas ou dissenso, mesmo quando a ciência estava, ela mesma, aprendendo em tempo real.

Em uma sociedade já hiperpolarizada, o cientista, muitas vezes mal preparado para navegar essas águas turbulentas, deixa de ser um conselheiro confiável para se tornar apenas mais um soldado em uma guerra de trincheiras ideológicas. A própria comunidade científica, ao suprimir visões que fogem do consenso, acaba por reproduzir o dogmatismo que tanto critica, alimentando a desconfiança que a corrói.


O Caminho a Seguir: A Coragem da Autocrítica


Reconhecer esses problemas não é um ato de fraqueza; é o maior ato de força e de lealdade ao verdadeiro espírito científico. A história nos lembra, dos casos de Galileu a Semmelweis, que a maior resistência a uma nova verdade científica muitas vezes veio de dentro da própria comunidade estabelecida. Uma ciência que reconhece seus limites é muito mais confiável do que aquela que finge ser infalível.

A defesa da ciência não será vencida apenas com campanhas contra a desinformação. Ela exige uma mudança de paradigma: de uma atitude de autodefesa para uma cultura de autocorreção.

Isso significa reintegrar a formação científica com a filosofia e a ética. Significa abandonar a comunicação unilateral e adotar um diálogo humilde e genuíno com a sociedade, reconhecendo que é ela quem vive os benefícios, mas também os fardos, da atividade científica. Significa criar espaço para a pesquisa movida pela pura curiosidade, livre da tirania das métricas.

Ao cultivar a humildade e a abertura, a ciência pode voltar a ser o que é em sua essência: a mais poderosa e, ao mesmo tempo, mais humilde busca da humanidade para compreender o universo e a si mesma.

Para saber mais: Para quem quiser se aprofundar, as obras de pensadores como Daniel Sarewitz ("Saving Science"), Sheila Jasanoff (sobre a "coprodução" entre ciência e ordem social) e Paul Feyerabend ("Contra o Método") são leituras fundamentais sobre a crítica interna da ciência.

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