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O que é o Realismo Científico?

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Sejam bem-vindos a esta nova série no "Bases do Pensamento Científico". Iniciaremos esta jornada abordando a posição filosófica que, talvez de forma tácita, a maioria dos cientistas assume como ponto de partida: o Realismo Científico.

A questão central é tão elegante quanto complexa: A ciência descreve o mundo, ou apenas cria modelos que funcionam? Quando falamos de "quarks", "campos eletromagnéticos" ou "sequências genéticas", estamos a referir-nos a entidades e estruturas que existem objetivamente no tecido da realidade, ou estamos apenas a usar os conceitos mais úteis que temos até agora para prever fenómenos?

O Realismo Científico é a tese filosófica que defende, com várias nuances, que a ciência consegue (e deve) fornecer-nos uma descrição verdadeira sobre o mundo.

A Arquitetura do Realismo

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O Argumento Central: O Não-Milagre

A justificação mais poderosa para esta crença é o "Argumento do Não-Milagre" (No-Miracles Argument), classicamente associado a Hilary Putnam. A sua formulação é simples: o realismo é a única filosofia que não torna o sucesso preditivo da ciência um milagre absoluto.

Quando uma teoria prevê com uma precisão de várias casas decimais um fenómeno nunca antes observado, ou quando o GPS funciona aplicando correções da Relatividade Geral, o realista argumenta que a explicação mais plausível (e a única que não recorre à sorte cósmica) é que essas teorias capturaram, de facto, algo de real sobre a estrutura do mundo.

O Desafio Histórico: A Meta-Indução Pessimista

O Realismo Clássico enfrenta um desafio formidável, articulado por Larry Laudan: a "Metaindução Pessimista". Este argumento olha para a história da ciência e vê um "cemitério" de teorias que foram empiricamente bem-sucedidas no seu tempo, mas cujas entidades centrais hoje sabemos não existirem (pense no éter luminífero, no flogisto ou nos epiciclos ptolomaicos).

O argumento é uma indução simples: Se a maioria das teorias passadas de sucesso se revelou falsa, por que deveríamos acreditar que as nossas teorias atuais são diferentes?

É para responder a este desafio devastador que surgiram as formas mais sofisticadas e robustas de realismo, notavelmente as de Psillos e Chakravartty.

O Realismo Estrutural de Stathis Psillos

Stathis Psillos, talvez o mais influente defensor contemporâneo, responde à Metaindução Pessimista com uma refinada "defesa da seletividade". Ele argumenta que o erro dos pessimistas é tratar as teorias antigas como blocos monolíticos.

Para Psillos, devemos ser realistas apenas sobre as partes da teoria que foram essenciais para o seu sucesso empírico e que foram preservadas nas teorias subsequentes.

  • O Argumento: Tomemos as teorias do éter do século XIX. O sucesso preditivo das equações de Fresnel (que descreviam a difração da luz) não dependia da existência física do éter enquanto "substância mecânica". Dependia das relações matemáticas (a estrutura) que ele postulava.

  • A Tese de Psillos: O que a ciência preserva nas revoluções não é a descrição da "natureza" das coisas, mas a estrutura matemática e causal do mundo. O éter foi descartado, mas as equações de Fresnel foram preservadas nas equações de Maxwell. A ciência acerta na estrutura, mesmo quando erra na ontologia subjacente.

O Semirrealismo de Anjan Chakravartty

Anjan Chakravartty propõe uma abordagem ligeiramente diferente, muitas vezes chamada de "Semirrealismo". Ele está menos focado na estrutura matemática e mais focado nas nossas capacidades de intervenção e deteção.

  • O Argumento: Como podemos saber quais partes de uma teoria são "reais" e quais são meros andaimes conceptuais (como o éter)?

  • A Tese de Chakravartty: Devemos ser realistas sobre as propriedades causais que são detectáveis e manipuláveis. Uma entidade é real na medida em que podemos usá-la confiavelmente para intervir noutros fenómenos.

  • A Distinção: Não precisamos de acreditar na "essência" metafísica de um eletrão. No entanto, podemos ser realistas sobre as suas propriedades de massa e carga, porque essas são as propriedades que invocamos causalmente para explicar um traço numa câmara de nuvens ou para operar um microscópio eletrónico. O realismo de Chakravartty é um realismo pragmático, focado naquilo que "faz trabalho" causal no mundo.

Conclusão Provisória

O Realismo Científico não é uma crença ingénua de que o Manual de Física é a palavra final. É uma tese filosófica sofisticada que defende que o objetivo da ciência é, e deve ser, a busca pela verdade (mesmo que aproximada) sobre uma realidade independente.

Para o realista, o sucesso da ciência não é um acidente feliz; é a evidência de que a nossa "heurística interna" — o ato de teorizar e modelar — está a conseguir, lentamente e com muitas falhas, mapear a estrutura ontológica do próprio Ser.


No próximo post desta série: Vamos explorar o contraponto direto. E se os "milagres" acontecerem? E se a ciência for, de facto, apenas a arte de criar modelos cada vez mais úteis, sem qualquer pretensão de verdade? Analisaremos o Empirismo Construtivo de Bas van Fraassen.

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