O Ressurgimento do Sarampo como Sintoma: Desconfiança, Polarização e a Crise em Nossos Fundamentos de Julgamento
- fundamentos científicos
- 27 de mai.
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O recente e alarmante ressurgimento global do sarampo acende um alerta crucial. Uma correspondência publicada na The Lancet Infectious Diseases ("Why now? The measles controversy")¹ atribui esse fenômeno não apenas à queda nas taxas de vacinação, mas também a uma crise mais profunda de confiança pública na ciência e nas instituições, à falta de coragem política e ao enfraquecimento da autoridade científica no debate público. Os autores dessa correspondência identificam corretamente causas imediatas como a polarização político-ideológica, o excesso de narrativas conflitantes e uma certa complacência pública após períodos sem a manifestação ostensiva da doença, além de apontarem a tensão entre liberdade individual e os imperativos da saúde coletiva.
No entanto, embora o diagnóstico das causas próximas seja pertinente, a análise muitas vezes parece se apressar em encontrar culpados, arriscando aprofundar a polarização em vez de fomentar a compreensão. Tratar os sintomas como se fossem as causas últimas é um atalho retórico que se desvia da complexidade do problema.
As Raízes Mais Profundas da Crise de Confiança
Sustento que o fenômeno em questão tem raízes mais profundas, das quais as causas apontadas são, em grande medida, manifestações. O cerne da questão reside, a meu ver, em uma dificuldade crescente do indivíduo contemporâneo – imerso em um ambiente de saturação informacional e narrativas fragmentadas – de exercer a capacidade de reflexão ponderada sobre o mundo e sobre si mesmo. Estamos tão imersos em camadas de versões, opiniões e discursos contraditórios que o contato com o real, e a habilidade de discerni-lo, tornam-se progressivamente mais árduos.
Como ensinava Aristóteles, a sabedoria no julgamento (prudência, phronesis) reside na capacidade de considerar todos os aspectos relevantes de uma questão, ouvindo os diversos lados, para então decidir com base no conhecimento objetivo e na reta razão. Contudo, se a verdade é classicamente entendida como a adequação do intelecto à coisa (adaequatio intellectus et rei), como formar juízos sólidos quando o acesso à "coisa" é mediado por um excesso de interpretações e ruídos que dificultam o discernimento?
O Ruído Moderno, o Argumentum ad Hominem e a Contraprodutividade da Beligerância
Essa profusão de vozes e a consequente dificuldade de orientação são características distintivas do nosso tempo. Se antes a opinião individual tinha alcance limitado, hoje qualquer perspectiva pode se irradiar globalmente, formando um "ruído de fundo" perene que dificulta a escuta atenta da própria razão.
Nesse contexto de cacofonia informacional, uma postura beligerante ou de simples condenação para com aqueles que expressam desconfiança ou pontos de vista divergentes tende a ser profundamente contraproducente. Em vez de restaurar a confiança ou promover o entendimento, tais abordagens frequentemente exacerbam o ceticismo, aprofundam a polarização e esgarçam o tecido social, minando a credibilidade das próprias instituições, incluindo as científicas. A desconfiança, uma vez instalada, não se dissipa com meras reafirmações de autoridade ou com a desqualificação do interlocutor.
Aliás, uma tática retórica que infelizmente se tornou comum nesse ambiente polarizado é o recurso ao argumentum ad hominem: em vez de se enfrentar a substância de um argumento, ataca-se ou desqualifica-se a pessoa que o apresenta. Essa falácia não apenas desvia o foco do debate racional sobre as ideias, mas também envenena o ambiente de discussão, tornando o diálogo construtivo praticamente impossível. Quando se opta por rotular ou ridicularizar o oponente em vez de analisar suas razões, fecha-se a porta para qualquer possibilidade de aprendizado mútuo ou de construção de consensos, por mínimos que sejam.
A Urgência do Diálogo e os Perigos do Silenciamento: dois erros nunca geram um acerto
É preciso, portanto, entender o momento histórico e agir com a prudência que a situação exige. Isso implica, fundamentalmente, o esforço de trazer luz às discussões, apresentando dados, argumentos e mesmo as incertezas de forma transparente e acessível, considerando todos os ângulos relevantes – incluindo os menos favoráveis ao ponto que se deseja defender. Significa, acima de tudo, tratar a população não como uma massa incapaz de compreender, mas como um conjunto de indivíduos dotados de inteligência, ainda que, por vezes, possam estar mal informados ou desorientados.
Estou certo de que uma parcela significativa da atual desconfiança nas autoridades de saúde e científicas tem suas raízes na forma como a pandemia de COVID-19 foi gerenciada e comunicada. Muitas questões cruciais, que demandavam um debate público aberto, franco e plural, foram frequentemente suprimidas ou tratadas unilateralmente, muitas vezes sob o pretexto de combater a "desinformação" ou garantir um consenso monolítico. Contudo, o direito à opinião e à sua livre expressão é um aspecto inalienável da dignidade humana e um pilar de uma sociedade que se pretende livre e democrática. Embora os excessos e as falsidades deliberadamente danosas devam ser combatidos, o caminho para tal é através de mais luz, debate robusto e contra-argumentação sólida. Silenciar opiniões divergentes ou minoritárias, mesmo que com as melhores intenções, raramente conduz à verdade ou constrói confiança duradoura, mas ao contrário: a história repetidamente nos ensina que tais caminhos de supressão têm se provado consistentemente desastrosos tanto para o progresso intelectual quanto para o bem-estar social, tal como apontado por Paul Feyerabend em seus ensaios. Atravessamos aquele período crítico da pandemia, e persiste uma sensação de que não nos debruçamos sobre os eventos, as decisões e suas consequências com a maturidade e a profundidade necessárias. Muitas lições parecem ter sido varridas para debaixo do tapete, como um pesadelo que se prefere esquecer. Mas as impressões, e a desconfiança, permanecem.
Construindo Pontes: O Caminho para Restaurar a Confiança
Para reconstruir a confiança e promover uma adesão consciente às práticas de saúde pública, como a vacinação, é imperativo construir pontes com a sociedade, buscando o diálogo genuíno e as razões subjacentes às diversas posturas. É preciso, como nos lembra o princípio aristotélico, ouvir o outro lado (um princípio semelhante ao audi alteram partem).
Cientistas e autoridades de saúde precisam estar mais bem equipados para esse diálogo. Isso requer não apenas domínio técnico, mas uma formação humanística e filosófica que lhes permita compreender as dimensões éticas, sociais e psicológicas envolvidas, e que os prepare para se despirem de seus próprios preconceitos – pois eles também são parte da sociedade e suas polarizações.
Não existem soluções fáceis ou rápidas. O caminho envolve diálogo franco, paciente, alicerçado em um compromisso genuíno de realmente compreender o raciocínio dos outros sem condenação prévia, e uma disposição para engajar em argumentação racional na busca por um terreno comum ou, no mínimo, por uma compreensão mútua. Somente assim poderemos começar a restaurar a confiança na ciência, não como uma crença cega, mas como uma adesão racional ao conhecimento que busca, com honestidade e rigor, o bem comum.
Referências Mencionadas no Texto Original:
Branda F, Scarpa F, Ciccozzi M. Why now? The measles controversy. Lancet Infect Dis. 2025;25(6):e318-e319. Publicado Online em 16 de abril de 2025. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(25)00239-7




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