O 'Quê' e o 'Porquê' na Ciência: A luta obstinada de Ignaz Semmelweis
- fundamentos científicos
- 16 de mai.
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A história do médico húngaro Ignaz Semmelweis (1818-1865) e sua obstinada, e trágica, luta para convencer a comunidade médica de Viena a adotar uma medida asséptica elementar – a lavagem das mãos – é um dos episódios mais emblemáticos e melancólicos da história da medicina. Sua batalha para reduzir as alarmantes taxas de mortalidade por febre puerperal em mulheres no século XIX é uma narrativa que merece ser revisitada com atenção, pois ainda hoje lança luz sobre a complexa dinâmica dos "consensos científicos" e como estes podem, por vezes, ser influenciados por interesses ou dogmas vigentes.
No entanto, o propósito central deste post é analisar o caso Semmelweis sob uma ótica filosófica mais fundamental, resgatando uma distinção crucial já delineada por Aristóteles nos Analíticos Posteriores. O estagirita apontava para diferentes níveis de conhecimento científico, que podemos associar às suas "quatro perguntas científicas": se algo é (an sit), o que é (quid sit), o conhecimento do fato ou do "que é" (demonstração quia), e o conhecimento da razão de ser ou do "por que é" (demonstração propter quid). A saga de Semmelweis ilustra vividamente a tensão e a importância da distinção entre o conhecimento quia e o propter quid.
A Evidência Incontestável do "Quê" (Demonstração Quia)
Semmelweis, através de observações meticulosas e comparações estatísticas, demonstrou uma correlação inequívoca: a simples lavagem das mãos pelos médicos e estudantes que vinham da sala de autópsia antes de examinarem as parturientes resultava em uma drástica redução da febre puerperal e, consequentemente, das mortes. Onde essa prática era adotada, a mortalidade caía vertiginosamente; onde era negligenciada, permanecia assustadoramente alta.
Este tipo de demonstração, que estabelece uma clara relação de causa e efeito (ou, no mínimo, uma forte correlação) baseada na evidência empírica, mesmo sem que se conheçam todos os mecanismos subjacentes, é perfeitamente válido tanto na ciência da época de Semmelweis quanto na atual. É o que se denomina conhecimento ou explicação quia (do latim, "que" ou "o fato de que"). As explicações quia frequentemente marcam as fases iniciais de uma investigação científica, quando se identifica um fenômeno ou uma relação consistente, mas ainda não se dispõe de todos os dados ou do arcabouço teórico para elucidar completamente seus "porquês".
A Busca Pelo "Porquê" (Demonstração Propter Quid) e a Derrocada de Semmelweis
A ciência, em seu grau mais elevado de aspiração, busca incessantemente a explicação propter quid: almeja não apenas constatar os fatos, mas desvendar as razões pelas quais as coisas são como são, explicando os mecanismos íntimos e os fundamentos dos fenômenos. Seja a natureza da febre, o mecanismo da gravidade ou o processamento da informação no cérebro, o objetivo último é alcançar o "porquê".
As explicações quia evidenciam a relação, mas não a explicam em sua totalidade causal. E aqui residiu, em grande parte, a dificuldade e a eventual derrocada de Semmelweis, embora sua tragédia não fosse uma necessidade científica. Ele apresentou uma demonstração quia robusta e de imensa importância prática, válida à luz do conhecimento vigente. Contudo, quando confrontado com a pergunta "mas por que a lavagem das mãos previne a febre puerperal? Qual o mecanismo exato?", Semmelweis não podia oferecer uma resposta que satisfizesse plenamente os seus contemporâneos. A teoria microbiana da doença, desenvolvida por Pasteur e Koch, que forneceria a explicação propter quid para a eficácia da assepsia, ainda demoraria alguns anos para se consolidar.
A resistência à sua descoberta não se deu apenas por falta de uma explicação causal completa (embora isso tenha sido um fator), mas também por orgulho, preconceitos e a defesa de teorias estabelecidas. A ironia é que a própria comunidade científica, que deveria prezar pela evidência, muitas vezes resistiu a uma observação quia clara por não se encaixar no paradigma explicativo da época.
Lições para a Ciência Atual
A história de Semmelweis nos ensina que a ciência, independentemente de seu grau de maturação em uma determinada área, opera constantemente com uma mescla de respostas quia e propter quid. Inúmeros tratamentos médicos são eficazes (quia) mesmo que seus mecanismos de ação não sejam completamente elucidados; observamos correlações claras entre fenômenos cósmicos ou quânticos (como o "emaranhamento quântico", o antigo "efeito fantasma") cujas explicações propter quid ainda são objeto de intenso debate e pesquisa.
A principal lição é a necessidade de humildade intelectual e paciência metodológica. Não se deve descartar evidências robustas de um fenômeno (quia) apenas porque sua explicação causal completa (propter quid) ainda nos escapa. Em muitos casos, com o avanço da pesquisa e o desenvolvimento de novas ferramentas teóricas ou experimentais, as explicações podem surgir. A ausência de um "porquê" imediato não invalida um "quê" bem estabelecido. Descartar o que não se sabe explicar é, muitas vezes, fechar as portas para o futuro da própria ciência.




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