O aumento da Calota Polar e os Paradigmas Científicos: o Incômodo do Inesperado
- fundamentos científicos
- 3 de jul.
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Uma publicação recente no periódico científico Science China Earth Sciences (DOI: 10.1007/s11430-024-1517-1) trouxe à tona um dado que, à primeira vista, destoa da tendência de longo prazo observada na criosfera: a detecção de um ganho de massa de gelo em setores da Antártida Oriental. Longe de ser uma refutação simplista de modelos climáticos, o dado foi recebido pela comunidade como uma 'anomalia' a ser explicada, um quebra-cabeça que não se encaixa de forma óbvia na imagem do tabuleiro. É precisamente essa reação — o tratamento do inesperado — que servirá de pano de fundo para nossa discussão, que não foca no clima, mas nos aspectos sociológicos e estruturais da própria prática científica.
Quando a comunidade científica se refere ao fenômeno observado como ‘inesperado’ é porque compreende o mesmo sob a óptica baseada no paradigma. Esta ideia foi desenvolvida pelo filósofo e físico americano Thomas Khun (1922-1996) em seu célebre “A estrutura das Revoluções Científicas”. Segundo Khun, o paradigma “é um conjunto de realizações científicas amplamente reconhecidas que, durante um determinado período, fornecem modelos de problemas e soluções para a comunidade de praticantes de uma ciência”. Embora, ainda segundo Khun, a Ciência avance com novas descobertas, a ampla maioria dos cientistas se mantém atrelado ao paradigma vigente sem questioná-lo, mas apenas colocando as peças “puzzles’ no quebra-cabeças do conhecimento. No entanto, de tempos em tempos, surge algo que desafia o paradigma. São achados que contradizem ou desafiam a ‘verdade’ a muito estabelecida, e assim são chamados inicialmente de ‘anomalias’. Se o achado contraditório é apenas pontual, ele não chega a modificar o status quo do paradigma. Porém, se a tal ‘anomalia’ é confirmada em muitas pesquisas (ou se mantém como tendência), podemos ter a ‘quebra do paradigma’, e que pode provocar tsunamis científicos: negação por parte da comunidade científica, mudança de programa científico, desilusão com a ciência, e assim por diante.
Do cadáver do velho paradigma, surge um outro, inicialmente revolucionário, e que traz consigo novos grupos de pesquisa munidos de sua própria linguagem e neologismos, compartilhando uma mesma visão de mundo (do alemão, ‘weltanschauung’) que se cristaliza na mente da sociedade científica, reiniciando o ciclo até uma nova crise, o que pode demorar décadas, séculos ou milênios para ocorrer (vide a concepção de Sistema Solar ptolomaico versus copernicano).
Uma outra visão sobre a questão foi desenvolvida pelo filósofo e matemático húngaro Imre Lakatos (1922-1974) em sua teoria sobre os ‘Programas de Pesquisa’, publicados na obra “A Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica”. Nesta, Lakatos também se inclina à questão sociológica da pesquisa científica, defendendo a ideia de que a Ciência se organiza em programas de pesquisa, bastante semelhante à ideia do paradigma de Khun, constituída por um núcleo duro protegido por um cinturão de hipóteses auxiliares que podem ser aprimorados (heurística positiva) ou refutados (heurística negativa). É importante notar que na visão de Lakatos, as modificações e questionamentos científicos atingem somente ao cinturão auxiliar, mas nunca seu núcleo duro, que é o próprio alicerce ou coração do programa de pesquisa. E como Lakatos lida com as descobertas que desafiam mortalmente uma teoria científica mantida pelo núcleo duro? Simplesmente novas teorias com maior poder explicativo vão se sobrepondo à anterior, sem que haja necessidade de uma ‘revolução científica’ ao modo de Khun, e asim o programa torna-se degenerante, abrindo caminho para novos programas com maior potencial para novas pesquisas, e que vão se tornando mais atraentes em relação ao anterior, que desidrata naturalmente.
Falamos aqui do gelo polar, apenas por uma questão de oportunidade, mas poderíamos ter falado sobre as também recentes periécias do telescópio James Webb que tem feito várias descobertas impressionantes, incluindo imagens de galáxias distantes e antigas que dasafiam nosso conhecimento do Cosmos e abalaram a própria Teoria do Big-Bang. Isso não significa que tais teorias estejam necessariamente equivocadas em função destes dados, em especial sobre o complexo clima terrestre que ainda possue muitas lacunas a serem preenchidas. Chama a atenção a ‘reação’ quase reflexa de diversos pesquisadores e da própria mídia em tratar o achado como uma mera ‘anomalia’, desqualificando-a em certo aspecto, além de destacar mais as ‘ressalvas’ do que o fenômeno em si, o que nos faz retomar Khun e Lakatos quando falam do apego do cientista à sua teoria ou programa de pesquisa de estimação. Para ilustrar esta situação de desconforto Khun, ainda em seu A Revolução, traz uma frase do eminente químico e leureado Nobel Wolfgand Pauli escrita a um colega em 1924, durante a crise da física que precedeu o surgimento da mecânica quântica: "No momento, a física está terrivelmente confusa de novo. De qualquer modo, é difícil demais para mim, e eu gostaria de ter sido um comediante de cinema ou algo do tipo e nunca ter ouvido falar em física."
A visão da pesquisa científica como uma atividade puramente objetiva, imune a subjetivismos e expectativas, é uma simplificação que seduz tanto o público leigo quanto a própria comunidade. As perspectivas de Kuhn e Lakatos, embora distintas, convergem ao revelar que a ciência é mais do que uma caça a causas e relações. Ela se desenrola dentro de uma matriz invisível — teórica, estrutural e social — que é, ao mesmo tempo, sua fundação e seu limite. Compreender essa matriz não diminui a ciência; pelo contrário, a humaniza e revela sua verdadeira natureza: um empreendimento coletivo, em constante diálogo com suas próprias certezas.




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