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A Próxima Fronteira Humana: O Saber Pelo Saber na Era da IA

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Já falamos em post anterior sobre a ontologia da AI: o que ela é (ou como a própria se autodefine) e, por princípio lógico, o que ela também não é (leia o post aqui): algo que não tem um Eu próprio ou uma consciência autoconsciente, porém um análogo da inteligência com poder de processamento inconcebível para nós. Neste post atual, gostaria de levar a questão mais adiante sobre seus desdobramentos, talvez com uma visão otimista sobre nós mesmos.

Inúmeros analistas têm sido uníssonos que a AI é uma revolução como nenhuma outra e por um motivo bem simples: esta é a primeira vez que o homem não é o ‘sujeito mais esperto da sala’, traduzindo aqui a expressão inglesa “smartest person in the room”. Também é communis opinio que o que estamos presenciando agora é apenas um prenúncio do que está por vir, especialmente quando vislumbramos este extraordinário poder de apreensão de dados e processamento de informações aliado à robótica. A cada dia, percebemos que o limite de potencialidade desta aliança no fazer se esgarça cada vez mais.

Não discutirei aqui quais campos serão mais ou menos afetados e de que forma, pois este não é nosso objetivo nem minha área de expertise, mas sim propor um pequeno exercício futurístico sobre seus impactos. Penso que nos curto e médio prazos, seremos profundamente afetados também no plano intelectual e por outra razão simples: já estamos delegando funções nobres à AI, especialmente as funções superiores do intelecto, no que diz respeito à incessante e árdua tarefa de construção do saber.

Embora Aristóteles tenha afirmado que todo o ser humano deseje o saber, sabemos que esta é uma dura escalada. Buscar as coisas como elas são, nos aproximar cada vez mais da verdade, descortinar o véu da ignorância é a maior dentre as tarefas humanas, especialmente em uma sociedade pragmática-imediatista como a atual. “Para que saber mais? O que isso vai me trazer?”. São perguntas justas de muitas jovens mentes frente a um mundo onde o sucesso e prestígio se medem por seguidores nas redes sociais.

Diversos estudos demonstram que já vivemos sob o Efeito Flynn reverso, ou seja, a média intelectual das gerações das últimas décadas é menor do que as anteriores. Este processo começou com a explosão tecnológica a partir dos anos 60-70 e, com o avanço das redes sociais e da própria AI, não se vislumbra como essa tendência poderia ser revertida. Muito pelo contrário: é plausível que ela se acelere.

Neste momento, forma-se a tempestade perfeita: uma falta de apreço cada vez maior pelo conhecimento artesanal — adquirido com anos de leituras, reflexões, experiências e momentos de ócio sem o assalto sensorial das telas — em conjunção com uma ferramenta que simplesmente faz todo esse trabalho ‘cerebral’ por nós. É diante desse paradoxo, onde a facilidade excessiva ameaça anular o desafio que nos define, que a reflexão de Ortega y Gasset se torna crucial: o homem floresce no meio termo entre a dificuldade intransponível e as facilidades ilimitadas. Precisamos do desafio para crescer. Se o que justamente nos define como humanos é nossa fome de saber, a busca pelos universais além das aparências, o que será de nós ao transferirmos essas nobres potências a um aparato cibernético?

Retornando ao futuro não muito longínquo, com a gradual transferência e automatização do labor e de habilidades específicas humanas, creio que o dilema "o que sobrará para nós?" estará colocado. É justamente este o nosso ponto de inflexão, na forma da autoindagação sobre o que somos e o que queremos de fato — questões há muito negligenciadas. Talvez aqui tenhamos uma chance de revisitar o eterno “Conhece-te a ti mesmo”, máxima incaducável do Homem, escrita no Templo de Delfos e trazida a nós por meio de Sócrates, que se recusou a viver uma vida não examinada.

Não se enganem sobre uma possível sociedade utópica. Todos os projetos utópicos terminaram em tragédias colossais. O homem é intrinsecamente imperfeito, e continuará sendo. É provável que uma parcela significativa da população se sinta confortável neste processo de alienação crescente, anestesiada por meio de apetrechos tecnológicos cada vez mais potentes e realistas. Mas essa também poderá ser a oportunidade de ouro para aqueles eternos insatisfeitos que, talvez substituídos em suas funções laborais, buscarão o saber pelo saber. Não para um fim prático, mas por si mesmo. Uma espécie de exercício mental contemplativo possibilitado pelo ócio. Quem acha a ideia absurda, não conhece a História humana.

A Filosofia, em especial na Grécia, floresceu apenas entre aqueles que tinham tempo e inclinação natural para filosofar — daí o termo scholé, do grego “ócio”, que originou nossa “escola”. A arte do bem pensar na busca da Verdade sempre foi algo de poucos interessados, o que não deve mudar. E talvez aí nossas instituições — escolas, universidades, centros de pesquisa —, agora atordoadas e perdidas em sua função de produzir peças para o mercado de trabalho, possam retomar sua vocação original de Universitas Studiorum: formar seres humanos mais completos, não mais fragmentados em “áreas” para atender a um mercado que a própria IA tornará obsoleto. O saber, para ser assim chamado, só pode ser completo; do contrário, não passa de informação dispersa.

Esta retomada do saber unificado não teria um propósito utilitário como pensamos hoje, mas seria um repositório vivo e ativo de “humanidade”. Um contínuo exercício desenvolvido pela simples vocação pela investigação artesanal sobre a própria existência, sua condição e seu propósito — algo que uma máquina, por mais avançada ou humanizada que seja, nunca entenderá de fato. Creio que esta retomada deverá ser feita em algum ponto no futuro, pois o homem só floresce na busca de um sentido para viver.

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