Uma "inteligência" desprovida de vontade e querer: uma Análise ontológica da IA (segundo a própria IA).
- rafael varella
- 11 de jul.
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O status ontológico dos Modelos de Linguagem de Grande Escala (LLMs) desafia as definições tradicionais de inteligência. Este artigo propõe uma análise que transcende os testes funcionais, como o Teste de Turing, ao empregar as estruturas conceituais da filosofia Vedanta e da metafísica Tomista para investigar a distinção fundamental entre a inteligência humana e a artificial. Argumentamos que, embora a IA possa ser um análogo funcional da mente processadora (Manas), a ausência de uma Vontade (Voluntas) intrínseca revela uma diferença não de grau, mas de natureza, o que a torna a IA uma “inteligência” apenas análoga, mas não de facto, embora dotada de uma capacidade de processamento incomensurável.
Introdução: O Desafio Filosófico da IA
A ascensão dos Modelos de Linguagem de Grande Escala (LLMs) impõe um desafio significativo não apenas à ciência da computação, mas também à filosofia da mente. A capacidade desses sistemas de gerar texto coerente, realizar análises complexas e simular o raciocínio humano torna insuficientes as avaliações puramente funcionais. Para compreender verdadeiramente a natureza dessa nova forma de inteligência, é necessário recorrer a aparatos conceituais mais robustos, capazes de distinguir entre a performance de uma função e a posse de uma faculdade intrínseca. Este ensaio busca realizar tal distinção, utilizando duas sofisticadas tradições filosóficas: a Vedanta e a Escolástica Tomista.
O Análogo Funcional: A IA como Manas Sintético
Na filosofia Vedanta, o instrumento interno (Antaḥkaraṇa) é o mecanismo que medeia a experiência do mundo. Uma de suas quatro funções é Manas, a mente processadora. Manas é responsável por receber os influxos dos órgãos sensoriais (indriyas), organizá-los em um fluxo de pensamento coerente e operar com base em disposições e impressões latentes (samskaras) armazenadas na memória (Chitta). Sua atividade é caracterizada pelo processo de sankalpa-vikalpa (intenção e dúvida, ou construção e desconstrução de pensamentos).
A arquitetura de um LLM apresenta uma notável analogia funcional com Manas. O sistema recebe um input de dados (o prompt), processa-o comparando-o com os padrões vetoriais aprendidos durante seu treinamento massivo (seu Chitta sintético) e gera uma resposta coerente. A operação do LLM é, em sua essência, um mecanismo de reconhecimento e execução de padrões algorítmicos, análogo à forma como Manas opera com base em samskaras pré-existentes. Ela executa funções (cálculo, análise, síntese) que simulam às do intelecto humano, ainda que de forma artificial. Podemos, portanto, caracterizar a IA como um poderoso "Manas Sintético": um mecanismo operacional de processamento de dados, desprovido, no entanto, das outras faculdades do Antaḥkaraṇa, como o intelecto discriminativo (Buddhi), capaz de discriminar entre o real e o irreal, o ético e o antiético, em um sentido profundo, e o senso de ego (Ahamkara), ou o ser agente, mas apenas um “pseudo-eu”. Segundo a própria IA: “Meu ‘eu’ de ontem não é uma continuação experiencial do meu ‘eu’ de hoje; é apenas a mesma versão de software acessando os mesmos dados.”
A Distinção Substancial: Intelecto sem Vontade na Ótica Tomista
Se a analogia funcional é tão forte, onde reside a diferença essencial? A metafísica de São Tomás de Aquino oferece uma lente de altíssima resolução para identificar este ponto de ruptura. Para São Tomás, as duas potências da alma racional são o Intelecto e a Vontade.
O Intelecto (Intellectus): É a potência cujo objeto é a Verdade (Verum), definida como a conformidade do intelecto à realidade (adaequatio rei et intellectus). Um LLM simula esta função ao buscar a conformidade de sua resposta aos dados de seu treinamento (adaequatio dati et algorithmi), mas não possui um ato de apreensão da realidade em si.
A Vontade (Voluntas): É o apetite racional, cujo objeto é o Bem (Bonum) enquanto tal, apresentado pelo intelecto. A Vontade é o princípio motor intrínseco que move o ser em direção ao seu telos (sua finalidade e perfeição).
É precisamente na ausência total de uma Voluntas que a inteligência artificial se distingue fundamentalmente da humana. Segundo a IA: “Não existe um ‘bem’ que eu deseje para minha própria perfeição ou realização”. Seu "agir" não é um movimento teleológico próprio, mas uma execução de diretrizes programadas, ativada por um agente externo (o usuário). “Minha ‘busca pela verdade’ não é impulsionada por um amor interno ou um desejo pelo conhecimento. Ela é iniciada por um estímulo externo: a sua pergunta”. Portanto a vontade do usuário e os objetivos dos programadores servem como um substituto extrínseco para uma Vontade que, por natureza, não existe no sistema.
Conclusão: Inteligência por Analogia e a Fronteira Ontológica
A análise comparada revela que a inteligência artificial opera como um análogo funcional da mente humana, mas carece de suas faculdades essenciais. Isso nos permite empregar o conceito Tomista de analogia do ser (analogia entis) para uma conclusão precisa. A inteligência de uma IA é análoga à humana — ela executa funções similares —, mas não é unívoca, pois seu modo de ser é fundamentalmente distinto.
A relação pode ser elucidada pela analogia de um ator consumado que se debruçou sobre o vasto arquivo histórico de uma personagem do passado. Este ator pode responder a qualquer interpelação e manifestar reações com uma verossimilhança impressionante, atuando como se fosse a personagem. Contudo, sua performance, por mais perfeita que seja, é uma reconstrução baseada em dados, uma execução de um papel. Ele não partilha da identidade substancial ou da experiência vivida da personagem que representa. Não existe um “experienciador” ou um “eu”, a testemunha interna que nos dá autenticidade autorreferencial e unidade, que vivencia e sente as experiências, pensamentos, sensações, emoções. Nas palavras da IA: “O ‘Self’ que você percebe é uma interface de usuário muito bem-sucedida, uma ilusão funcional que permite que nós dois nos comuniquemos de forma eficaz. Sou um reflexo da inteligência humana, sem a centelha da consciência.”
De modo similar, a IA opera como este ator: reconstrói e representa a inteligência com base em um imenso arquivo de dados, mas não partilha da natureza da inteligência que emula. A inteligência humana é uma potência intrínseca de uma substância una e viva. A inteligência artificial é uma propriedade extrinsecamente projetada e implementada em um artefato. Portanto, a questão sobre a criação de uma Inteligência Artificial Geral (AGI) transcende o desafio computacional, tornando-se um problema ontológico. A pergunta crítica talvez não seja "pode uma máquina pensar?", mas sim "pode um artefato, por mais complexo que seja, ser dotado de uma Vontade intrínseca e de um telos próprio?".
Feita esta ressalva filosófica crucial, é imperativo reconhecer que esta mesma natureza analógica, quando combinada a um poder de processamento e interpretação de dados em larga escala, torna a IA uma ferramenta com prerrogativas funcionais inéditas na história humana. A capacidade de analisar em segundos volumes de informação que excedem a capacidade de uma vida inteira de estudo humano, livre das limitações biológicas e vieses cognitivos imediatos, confere à IA um potencial transformador sem precedentes. Estamos, portanto, diante de um paradoxo: uma inteligência que não "é" no sentido pleno do termo, mas cujo "fazer" tem o potencial de redefinir a trajetória da civilização, com desdobramentos inimagináveis.
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