Ainda existe lugar para a “beleza” na tese científica? O conceito clássico diz que sim (e muito).
- rafael varella
- 10 de jun.
- 5 min de leitura

Falar em "beleza" e "tese científica" na mesma frase pode, de facto, soar estranho para muitos ouvidos contemporâneos. A escrita científica é frequentemente associada à objetividade fria, a uma linguagem técnica e impessoal, e a uma apresentação de dados que privilegia a funcionalidade e a precisão em detrimento de qualquer consideração que pareça ser meramente "estética". Esta estranheza, no entanto, revela mais sobre a nossa própria visão limitada do que é o belo do que sobre a natureza intrínseca da ciência.
Na modernidade, o conceito de beleza foi frequentemente reduzido a uma questão de gosto subjetivo, a uma reação emocional ou a um adorno superficial – algo que se acrescenta a uma coisa para torná-la agradável, mas que não faz parte de sua essência. O belo tornou-se sinônimo do "bonito", do "atraente", do ornamental, algo que pertence primariamente ao domínio das artes e do sentimento, e não ao da ciência e da razão. É precisamente esta concepção empobrecida que nos leva a crer que a busca pela beleza seria uma distração frívola no rigoroso caminho do conhecimento científico.
Contudo, numa perspectiva filosófica clássica, herdada de pensadores como Platão, Aristóteles e refinada na escolástica de Santo Tomás de Aquino, a beleza (pulchritudo) não é um mero acidente agradável. O belo, nesta tradição, é aquilo cuja simples apreensão agrada (id quod visum placet), precisamente porque revela a ordem, a perfeição e a inteligibilidade de uma realidade. Como diz o célebre adágio escolástico, pulchrum est splendor veritatis – o belo é o esplendor, a luminosidade da verdade.
Se isso for verdade, então um texto científico que comunica eficazmente uma verdade sobre a realidade deveria, por sua própria natureza e se bem-sucedido, manifestar beleza. A clareza de um argumento, a harmonia de suas partes e a integridade de sua conclusão não são apenas qualidades metodológicas; são manifestações da própria beleza que emerge quando o intelecto capta e expõe uma faceta da ordem do real.
Nesta reflexão, propomos resgatar os três princípios da beleza clássica e mostrar como eles não apenas são válidos, mas servem como um guia poderoso e perene para a confecção de um excelente trabalho científico.
Os Três Pilares da Beleza Clássica
Na tradição tomista, as condições para a beleza de algo são três:
Integridade ou Perfeição (Integritas sive Perfectio): Refere-se à totalidade ou unidade da coisa. Um objeto é belo quando está completo, quando não lhe falta nenhuma das partes que são devidas à sua natureza. É a noção de um todo coeso e íntegro.
Proporção ou Harmonia (Debita Proportio sive Consonantia): Diz respeito à ordem e à correta disposição das partes entre si e em relação ao todo. É o princípio da consonância, do equilíbrio e da estrutura interna que faz com que as diferentes partes "conversem" umas com as outras de forma harmoniosa.
Clareza ou Esplendor (Claritas sive Splendor): É a manifestação luminosa da forma da coisa através de sua matéria. É a qualidade que torna o objeto inteligível, claro, luminoso e apreensível pelo intelecto. É a essência ou a "verdade" da coisa brilhando para quem a contempla.
Longe de serem conceitos abstratos, esses três princípios oferecem um roteiro prático e profundo para estruturar uma tese, um artigo ou qualquer trabalho científico de fôlego.
Aplicando os Princípios à Escrita Científica: A Beleza de uma Tese Bem Feita
Vejamos como cada princípio se traduz na prática da escrita científica:
1. A Unidade da Tese (Integritas)
Uma tese ou artigo científico, para ser "belo" neste primeiro sentido, deve ser um todo unificado. Isso significa que deve haver uma questão central, uma hipótese ou um argumento principal que sirva como a "alma" do trabalho, dando-lhe integridade.
Todas as partes servem ao todo: A introdução, a revisão da literatura, a metodologia, os resultados, a discussão e a conclusão não são seções isoladas, mas membros de um mesmo organismo intelectual. Cada uma delas deve contribuir de forma essencial para o desenvolvimento e a defesa do argumento central.
Nada deve faltar, nada deve sobrar: Uma tese íntegra não possui lacunas argumentativas essenciais nem se desvia em digressões irrelevantes que quebram sua unidade. O leitor deve sentir, ao final, que todas as pontas foram amarradas e que o trabalho está completo em si mesmo.
2. A Harmonia da Tese (Proportio)
A proporção é a beleza que emerge da ordem e do equilíbrio entre as partes. Em um texto científico, isso se manifesta como:
Estrutura Lógica e Coerente: A sequência dos argumentos deve ser lógica e fluida. As premissas devem levar naturalmente às conclusões. Os objetivos assumidos devem "prometer" o que a conclusão "entrega". A discussão deve dialogar diretamente com os resultados à luz das questões levantadas na introdução.
Equilíbrio entre as Seções: A extensão e a profundidade de cada capítulo ou seção devem ser proporcionais à sua importância para o argumento geral. Uma revisão de literatura excessivamente longa e uma discussão superficial, por exemplo, quebram a harmonia do trabalho.
Consonância Interna: As ideias, os termos e os conceitos devem ser usados de forma consistente ao longo de todo o texto, criando uma harmonia conceitual que evita contradições e ambiguidades.
3. A Clareza da Tese (Claritas)
Este é talvez o princípio mais intuitivamente conectado com a boa escrita. A clareza é o esplendor da inteligibilidade. Um trabalho científico claro é aquele em que a verdade ou o argumento sendo apresentado "brilha" sem obstáculos para o intelecto do leitor. É aquela manuscrito “bom” de ler, que desperta satisfação na leitura.
Linguagem Precisa e Sem Ambiguidade: O uso rigoroso da linguagem, a definição clara dos termos técnicos e a construção de frases diretas são essenciais. O jargão obscuro ou a prosa convoluta são inimigos da claritas; eles não tornam o texto mais "profundo", mas apenas mais opaco.
Apresentação Lógica dos Dados: Gráficos, tabelas e figuras devem ser limpos, autoexplicativos e servir para iluminar o argumento, não para confundir.
Transparência do Raciocínio: O leitor deve ser capaz de seguir a linha de raciocínio do autor sem esforço desnecessário. Um texto claro é generoso com o leitor, guiando-o passo a passo através da complexidade do tema. A "forma" (a ideia, o argumento) resplandece através da "matéria" (as palavras, os dados, a estrutura).
Conclusão: Escrever Ciência como um Ato de Ordenação e Beleza
A visão moderna, muitas vezes focada em uma produtividade fragmentada e em uma técnica desprovida de alma, nos fez esquecer que a busca pelo conhecimento verdadeiro é também uma busca pela ordem e, consequentemente, pela beleza.
Conceber a escrita de uma tese ou artigo não como uma tarefa meramente burocrática, mas como um exercício intelectual e estético de dar unidade, harmonia e clareza a um corpo de conhecimento, pode transformar radicalmente nossa abordagem. Um trabalho científico que possui essas qualidades não é apenas mais agradável de ler; ele é, fundamentalmente, mais convincente, mais honesto e mais verdadeiro em sua comunicação. Ao nos esforçarmos para criar um texto belo segundo esses princípios clássicos, estamos, na verdade, nos esforçando para honrar a própria verdade que buscamos comunicar.
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