Os Pilares Invisíveis da Ciência: Por Que Seus Pressupostos Não São (Propriamente) Científicos?
- rafael varella
- 2 de jun.
- 5 min de leitura
Atualizado: 5 de jun.

A ciência, inequivocamente, representa um dos mais potentes instrumentos desenvolvidos pela humanidade para a intelecção do universo. Seu rigor metodológico, a perquirição incessante por evidências empíricas e sua capacidade preditiva e transformadora conferem-lhe um status de proeminência na busca pelo conhecimento objetivo. Contudo, uma análise mais detida de seus fundamentos revela que o edifício científico se erige sobre pressupostos de natureza eminentemente filosófica, os quais, paradoxalmente, escapam à comprovação pelos próprios métodos da ciência.
O presente ensaio propõe-se a examinar três desses pilares que constituem a matriz basilar do empreendimento científico: a postulação de uma ordem intrínseca na natureza, a assunção da inteligibilidade dessa ordem pela razão humana e a admissão de uma realidade objetiva e independente do sujeito cognoscente. Argumentar-se-á que tais elementos, conquanto não estritamente científicos, são condições de possibilidade para a investigação científica.
O Primeiro Pilar da Matriz: A Ordem Pressuposta do Cosmos (Fundamento Metafísico)
A formulação de qualquer hipótese científica assenta-se, implicitamente, sobre a premissa fundamental de que o cosmos não se configura como um domínio puramente caótico e aleatório, mas, ao contrário, exibe padrões, leis e regularidades passíveis de identificação e análise. Tal é o pressuposto da Ordem. Na ausência desta, a própria noção de lei natural ou teoria científica perderia seu substrato.
É precisamente ao atribuir características e suas causas aos entes que a ciência, em última análise, busca a identificação de padrões, alicerçada neste pressuposto da ordem natural intrínseca à natureza. Os padrões observados, as frequências com que os fenômenos se repetem, as sequências regulares – todas são vistas como expressões desta ordem subjacente. É o reconhecimento dessa ordem que nos permite não apenas descrever o mundo, mas também prever fenômenos futuros, buscar os princípios e as leis explicativas que os governam e, em muitos campos, buscar intervir e, quando possível e eticamente justificável, controlar tais processos naturais para fins humanos.
Este postulado de ordem manifesta-se em diversos corolários admitidos pela prática científica:
Causalidade: A concepção de que os fenômenos observáveis são interligados por relações de causa e efeito, onde as causas precedem e determinam os efeitos de modo consistente. O método experimental, centrado na manipulação de variáveis e observação de seus consequentes, seria impraticável sem este axioma.
Princípio da Não-Contradição: Um cânone lógico fundamental, estendido à própria realidade, que postula a impossibilidade de um ente ser e não ser simultaneamente sob o mesmo aspecto. A coerência interna das teorias científicas e sua consistência com os dados empíricos refletem essa exigência de não-contradição da realidade.
Previsibilidade: Decorrência da ordem e da causalidade, a previsibilidade admite que o conhecimento das leis naturais e das condições iniciais de um sistema permite antecipar, com maior ou menor grau de acurácia, seus estados futuros.
Uniformidade da Natureza: Um dos mais basilares e extensivos pressupostos, estabelece que as leis naturais são invariantes no espaço e no tempo. As generalizações científicas, a extrapolação de resultados laboratoriais e a construção de modelos cosmológicos dependem crucialmente desta assunção de homogeneidade legaliforme do universo.
A natureza filosófica deste pilar reside no fato de que a ciência, embora descubra e formule leis específicas – manifestações particulares da ordem cósmica –, não pode demonstrar empiricamente a existência da Ordem como um princípio universal e fundamental da realidade. Qualquer experimento científico já opera sob a égide dessa pressuposição. A questão da existência da Ordem per se transcende o método científico, inserindo-se no domínio da metafísica.
O Segundo Pilar da Matriz: A Inteligibilidade do Mundo (Fundamento Gnosiológico)
A mera existência de uma ordem cósmica não seria suficiente para fundamentar a ciência se essa ordem não fosse, em alguma medida significativa, acessível à compreensão humana. O segundo pilar desta matriz é, portanto, o pressuposto da Inteligibilidade: a convicção de que a estrutura nomológica do universo é passível de ser apreendida e decifrada pela razão.
Dois aspectos cruciais sustentam este pressuposto:
Aptidão da Razão Humana: Postula-se que as faculdades cognitivas humanas – incluindo o raciocínio lógico-dedutivo e indutivo, a capacidade de abstração, a formulação de hipóteses e a interpretação de dados – são inerentemente adequadas para desvendar os mecanismos que regem o mundo físico. Assume-se uma correspondência funcional entre a estrutura da mente e a estrutura da realidade.
A ciência emprega a razão e a lógica como instrumentos, mas não pode, por seus próprios meios, provar cientificamente a validade última dessas ferramentas ou a razão pela qual o universo se revela cognoscível. A inteligibilidade configura-se, assim, como uma condição de possibilidade para a própria ciência, um fundamento de natureza gnosiológica ou epistemológica.
O Terceiro Pilar da Matriz: A Realidade Objetiva do Mundo Físico (Fundamento Metafísico)
Para que a ciência possua um objeto de estudo delimitado, é imprescindível admitir a existência de um mundo físico objetivo, cuja existência e propriedades são independentes da mente, das percepções ou das teorias formuladas pelo sujeito cognoscente. Trata-se da assunção de uma realidade "exterior", partilhável e investigável, que se manifesta através de diversos aspectos:
Objetividade Científica: A ciência aspira a descrever essa realidade tal como ela é, transcendendo as idiossincrasias e vieses subjetivos do observador. A validade do conhecimento científico é aferida, em grande medida, pela sua capacidade de ser verificado por diferentes pesquisadores, em diferentes contextos, mediante a replicabilidade dos experimentos. Tal intersubjetividade pressupõe uma realidade comum e estável como referente.
Existência para Além da Consciência (Realismo): A prática científica opera sob a premissa tácita do realismo filosófico, segundo a qual as entidades e processos estudados (e.g., elétrons, campos gravitacionais, galáxias) possuem um estatuto ontológico independente da consciência humana. Adicionalmente, pressupõe-se que esta realidade objetiva, embora seus constituintes fundamentais possam não ser diretamente acessíveis à percepção sensorial imediata (como no domínio quântico), é capaz de se manifestar ou interagir com o mundo observável de maneiras que produzem evidências empiricamente detectáveis. Tais evidências, apreendidas sensorialmente (ainda que por meio de complexa instrumentação e transdução de dados), formam a base para a testagem de hipóteses e a validação (ou refutação) de teorias. Sem essa "sensibilidade" última da realidade em fornecer rastros observáveis, a ciência perderia seu caráter empírico, e a plausibilidade matemática, por si só, não seria suficiente para validar descrições do mundo físico.
Este pilar também possui um caráter fundamentalmente filosófico, pois a ciência, ao investigar o mundo externo, não pode transcender a si mesma para provar, de forma não circular e independente, a existência dessa realidade objetiva em todas as suas dimensões aqui postuladas. Qualquer demonstração empírica já pressuporia a existência do que se pretende provar. A postulação de uma realidade objetiva e empiricamente acessível é, portanto, um fundamento metafísico que delimita o domínio de investigação da ciência.

Implicações: Refinando a Epistemologia da Ciência
O reconhecimento de que a ciência se fundamenta sobre esta matriz metafísica-gnosiológica e é impulsionada por crenças basilares não visa mitigar seu valor ou sua robustez epistêmica, mas, ao contrário, enriquece a compreensão de seu alcance e de suas limitações inerentes.
Fomentar a Humildade Epistemológica: Evidencia que a ciência, apesar de seu notável poder explicativo e preditivo, não constitui um sistema gnosiológico completamente autocontido ou autojustificado, dependendo de axiomas que transcendem seu próprio método.
Valorizar a Justificação Pragmática: Embora os pressupostos da matriz não sejam empiricamente demonstráveis, sua adoção tem se mostrado extraordinariamente fértil, como atesta o êxito da ciência em explicar, prever e intervir no mundo natural. Tal êxito confere-lhes uma robusta justificação pragmática.
Sublinhar a Interconexão com a Filosofia: Reitera-se a intrínseca relação entre ciência e filosofia. A reflexão filosófica sobre os fundamentos, métodos e limites do conhecimento é crucial para uma metaciência rigorosa e para a elucidação das crenças que sustentam a práxis científica.
Conclusão: A Ciência Edificada Sobre Alicerces Filosóficos
Em síntese, a matriz fundamental da ciência – que compreende a postulação da Ordem inerente ao cosmos, da sua Inteligibilidade pela razão humana e da existência de uma Realidade objetiva – não é tecida com descobertas científicas, mas sim com pressupostos de natureza filosófica (metafísicos e gnosiológicos). Sobre esta estrutura basilar, a crença no progresso científico atua como uma força motriz de considerável importância.
A elucidação desses fundamentos proporciona uma perspectiva mais integral e nuançada do empreendimento científico, convidando à reflexão contínua sobre a natureza do conhecimento e a complexa inter-relação entre os postulados que assumimos e nossa busca pela compreensão do universo.
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