Jabuticabas Científicas: Quando a Métrica Sufoca o Pensamento
- fundamentos científicos
- 26 de jun.
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Imagine se Albert Einstein, ao propor a Teoria da Relatividade, tivesse de se preocupar com o estrato do periódico em que publicaria seu artigo. Em 1905, ele publicou poucos trabalhos que, no entanto, revolucionaram para sempre nossa compreensão do tempo, do espaço e da matéria. Com essa produção quantitativamente "modesta", que avaliação ele receberia em um programa de pós-graduação hoje? Seria considerado pouco produtivo por não atender aos critérios do Qualis? Conseguiria financiamento, caso solicitasse?
E Galileu, que antes de apontar seu telescópio para o céu, precisasse verificar se sua descoberta se encaixaria nas exigências de uma tabela institucional? Ou Darwin, que ao escrever sobre a seleção natural, devesse se preocupar com o fator de impacto do periódico? Pois é exatamente essa a realidade que muitos pesquisadores brasileiros (e mundiais) enfrentam: a qualidade de uma pesquisa é frequentemente julgada não por seu conteúdo ou contribuição, mas pelo "endereço" em que foi publicada.
Essa provocação expõe o cerne de uma crise silenciosa em nosso sistema de avaliação científica. A "pressa moderna" e a valorização do "know-how" em detrimento de um conhecimento mais artesanal e aprofundado, encontrou sua expressão máxima em um sistema que se assemelha mais a uma “well-oiled machine” de uma linha de produção industrial do que com a natureza da investigação científica profunda.
Criado nos anos 1990 para auxiliar na avaliação dos programas de pós-graduação, o Qualis transformou-se em um verdadeiro oráculo burocrático. Periódicos foram estratificados (A1, A2, B1, etc.), e publicar em revistas de "baixo estrato" passou a ser visto quase como um fracasso acadêmico. Em vez de critérios de qualidade e pertinência, adotou-se um modelo que premia a capacidade de atender a requisitos formais de visibilidade e indexação.
O problema é que essa lógica não apenas distorce o sentido da pesquisa, mas também compromete a autonomia intelectual. Um estamento burocrático estatal não deveria ocupar o lugar de juiz epistemológico. Saber e verdade não podem ser reduzidos a métricas. A boa ciência precisa de liberdade, não de tabelas. O impacto de uma contribuição científica será medido pela reverberação natural de seus achados, o que, em muitos casos, pode levar décadas para se manifestar.
O cerne da questão não é novo: a partir do momento em que a universidade se integra à estrutura do Estado — um fenômeno recente na história milenar da instituição que viu o nascimento dos estados modernos —, surge uma tensão natural. É justo que o Estado, como financiador, queira prestar contas do dinheiro do contribuinte. O problema surge quando essa prestação de contas adota uma lógica puramente gerencialista, que se choca com a vocação para a especulação livre, essencial à pesquisa. Mas isso será assunto para outro momento.
Esse mal-estar não é uma percepção isolada; ecoa em toda a comunidade acadêmica brasileira. A professora Eliana M. Souto aponta que o Qualis induz a uma "produção estratégica": os autores escrevem e submetem artigos não com base no valor da pesquisa, mas em função do estrato do periódico. Publicar torna-se um jogo de adequação, não de descoberta. Nessa mesma linha, Elizabeth Balbachevsky lembra que a fórmula da produtividade cria um ambiente de conformismo, no qual a originalidade cede lugar à eficiência burocrática.
Os efeitos deletérios são detalhados por Denise Leite, Ana Paula Lopes e Carlos Hasenbalg. Eles demonstram como a pressão por publicar em certos periódicos alimenta um produtivismo que prejudica a formação de jovens cientistas, estimula práticas questionáveis e promove a desumanização do trabalho intelectual.
Rita Barradas Barata denuncia a criação de uma "casta editorial", na qual o estrato do periódico se sobrepõe à qualidade real do artigo. Em seu editorial na Ciência & Saúde Coletiva, ela questiona: ainda faz sentido continuar classificando conhecimento com base em tabelas? Ou estamos apenas mascarando a ausência de critério com o verniz da formalidade?
Talvez ninguém expresse essa crítica de forma tão contundente quanto Naomar de Almeida Filho, que vê o Qualis como um instrumento de tecnocracia acadêmica. Para ele, a ciência deve se ancorar na pluralidade epistemológica e na busca pelo sentido, não em gabaritos regulatórios. O modelo atual não apenas sufoca a criatividade, mas desfigura a própria missão do conhecimento.
Embora a tentativa atual de avaliação esteja em processo de modificação na busca por critérios mais justos, é crucial notar que este modelo de avaliação, com sua ênfase em uma métrica quantitativa atrelada a uma classificação estatal de periódicos, é uma peculiaridade do sistema brasileiro. Na maioria dos países com produção científica de ponta, como na América do Norte e na Europa Ocidental, a avaliação não depende de um ranking governamental centralizado. A comunidade utiliza métricas de impacto internacionais (como Fator de Impacto e CiteScore) como um dos vários indicadores, mas o pilar da avaliação continua a ser a análise qualitativa por pares (peer review), que julga o mérito intrínseco do trabalho. O caso da Austrália, que reverteu seu programa semelhante (ERA) após reconhecer as distorções causadas, é emblemático.
A ciência que devemos buscar não pode ser essa. Como já abordamos em outro post, o mundo vive uma queda na capacidade de inovação real, muito distante do chavão "inovação", que hoje parece mais um jargão retórico do que uma prática transformadora. A boa ciência é aventura intelectual. É feita de riscos, perguntas incômodas, erros fecundos e liberdade para pensar contra o estabelecido. Reduzi-la à conformidade com planilhas é uma traição ao seu espírito.
É preciso devolver à ciência o que lhe é mais caro: o direito de pensar livremente. Talvez, livres desses grilhões burocráticos, possamos ver surgir novos breakthroughs e cientistas do calibre de Lutz, Vital Brazil, Cruz, Chagas, Santos Dumont e Lattes. Como fazer isso? Embora existam muitas propostas técnicas, uma mudança é inegociável: a formação intelectual-científica (sempre indissociáveis) de nossos futuros pesquisadores precisa ser profundamente repensada. Não se trata apenas de ajustar métricas, mas de resgatar a própria cultura da investigação.



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