A Pressa Moderna e a Ciência: Quando o 'Fazer' Ofusca o 'Compreender’
- rafael varella
- 23 de mai.
- 4 min de leitura

A história da ciência é rica em episódios que nos convidam a refletir sobre a verdadeira natureza do conhecimento científico e sua relação com a prática experimental. Conta-se, por exemplo, que Galileu Galilei teria demonstrado a lei da queda dos corpos ao largar esferas de pesos diferentes do alto da Torre de Pisa. Curiosamente, há debates se tal experimento de fato ocorreu como descrito, e muitos historiadores sugerem que Galileu já havia chegado à sua conclusão através da robustez de seus fundamentos físico-matemáticos, que por si sós já refutavam a concepção aristotélica vigente. O "experimento mental" (Gedankenexperiment) ou a dedução a partir de princípios parecia, para ele, ter uma primazia sobre a mera constatação empírica isolada.
Em outra passagem marcante, o célebre entomologista Jean-Henri Fabre relata ter convidado Louis Pasteur para ajudar a solucionar uma devastadora praga que acometia as criações de bicho-da-seda no sul da França. Fabre, profundo conhecedor dos detalhes e minúcias do comportamento dos insetos, ficou inicialmente intrigado com a aparente pouca atenção de Pasteur aos pormenores que ele lhe apresentava. No entanto, à medida que Pasteur começava a investigar o problema, aplicando seus princípios fundamentais sobre microrganismos e fermentação, Fabre percebeu estar diante de um intelecto de uma solidez e profundidade admiráveis. O "saber fazer" detalhista do entomologista encontrava um contraponto no "saber pensar" principial do microbiologista, que acabou por identificar as causas da doença e propor soluções eficazes.
Estas duas narrativas, separadas por contextos e épocas distintas, tocam em um ponto nevrálgico que ecoa profundamente nos desafios da ciência contemporânea: qual é o devido lugar e a real importância do conhecimento dos fundamentos em relação à aplicação prática ou à especialização técnica? Em uma era frequentemente marcada pela "pressa em fazer", pela valorização quase que exclusiva da práxis e do "know-how" imediatamente aplicável, não estaríamos nós, porventura, negligenciando o cultivo de um conhecimento mais "artesanal" – no sentido de ser cuidadosamente elaborado, com domínio profundo de seus princípios – e verdadeiramente bem fundamentado?
Este post se propõe a explorar essa tensão, argumentando pela primazia de uma sólida compreensão dos fundamentos científicos como condição indispensável para uma prática científica que seja não apenas eficiente, mas também lúcida, inovadora e eticamente consciente.
A Característica Moderna: A Primazia da Práxis e suas Raízes
A valorização exacerbada da aplicação técnica e do "saber fazer" em detrimento da compreensão dos princípios não é um fenômeno isolado, mas uma característica marcante da modernidade. Essa "pressa em fazer" pode ser atribuída a diversos fatores, como a influência crescente do pragmatismo e do utilitarismo, que tendem a medir o valor do conhecimento por sua aplicabilidade imediata. A especialização cada vez mais acentuada, embora necessária para o avanço em áreas específicas, também pode contribuir para uma perda da visão de conjunto, onde o especialista domina sua técnica, mas desconhece os fundamentos mais amplos que a sustentam ou as suas conexões com outros campos do saber. Adicionalmente, as demandas de um mercado focado em soluções rápidas e resultados tangíveis frequentemente priorizam o "know-how" em detrimento de um investimento mais profundo na maturação intelectual e na compreensão dos primeiros princípios.
Essa inversão de prioridades, onde a técnica frequentemente se sobrepõe à compreensão profunda, não ocorre sem custos. Quando os fundamentos são negligenciados, o saber científico arrisca-se a uma compreensão superficial, onde os "porquês" se perdem em meio à aplicação mecânica de protocolos. A capacidade para a inovação genuína diminui, pois esta frequentemente brota de um questionamento radical dos princípios, não da mera otimização do conhecido. Além disso, um conhecimento desancorado de suas bases torna-se mais vulnerável a erros metodológicos, modismos intelectuais e a uma crescente fragmentação do saber, dificultando a visão de conjunto e o diálogo interdisciplinar.
Diante desse quadro, torna-se imperativo resgatar a primazia dos fundamentos, advogando por um "conhecimento artesanal e bem fundamentado". "Artesanal", aqui, não significa um retrocesso, mas sim a valorização da dedicação cuidadosa na elaboração do saber, o domínio dos princípios que informam as técnicas, a paciência na investigação e a busca pela excelência intelectual. Implica o estudo rigoroso dos princípios primeiros, a clareza conceitual, a compreensão da história das ideias científicas e o cultivo da reflexão crítica sobre os próprios métodos e pressupostos. Na formação científica, isso se traduziria em uma renovada valorização da teoria sólida, da lógica, da história do pensamento e da leitura das obras fundamentais, contrapondo-se à "pressa" por resultados imediatos e oferecendo o alicerce para uma visão integrada do saber, onde a técnica serve à compreensão, e não o contrário
A Relação Justa entre Fundamentos e Prática
É crucial reiterar que a defesa da primazia dos fundamentos não implica um menosprezo pela prática, pela técnica ou pela aplicação do conhecimento científico. A ciência, especialmente em sua vertente moderna, possui uma dimensão operativa e transformadora da realidade que é essencial e valiosa.
A questão central é de ordem e hierarquia. Os fundamentos devem iluminar, guiar e dar sentido à prática. A técnica, por mais sofisticada que seja, é um meio, um instrumento cujo valor e eficácia são potencializados quando empregados por um intelecto que compreende os princípios subjacentes. Um cientista com uma sólida formação nos fundamentos não apenas aplicará as técnicas com maior discernimento, mas também estará mais apto a adaptá-las, a inovar e a perceber suas limitações e implicações mais profundas. A prática, assim informada pelos princípios, torna-se mais fecunda e significativa.
Conclusão: Por uma Ciência com Raízes Profundas e Visão Ampla
As anedotas de Galileu e Pasteur, cada uma à sua maneira, nos recordam que a genialidade científica muitas vezes reside menos na aplicação virtuosa de uma técnica já conhecida e mais na capacidade de apreender e aplicar princípios fundamentais de forma original e perspicaz. Em um mundo que clama por soluções científicas para problemas complexos, reequilibrar a balança em favor do cultivo dos fundamentos não é um retrocesso, mas uma condição para o avanço verdadeiramente significativo e sustentável do conhecimento.
É preciso resgatar a noção de que a ciência, antes de ser um conjunto de ferramentas ou um acúmulo de dados, é uma virtude intelectual, um hábito da mente que se aperfeiçoa na busca pela verdade através de seus princípios e causas. Somente assim poderemos formar cientistas que sejam não apenas técnicos competentes, mas pensadores lúcidos, capazes de navegar a complexidade do real com profundidade, rigor e sabedoria.
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