O Abandono da Forma na Ciência ou: Por que um Jabuti não Sobe em Árvores
- rafael varella
- há 6 dias
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Talvez uma das ideias mais poderosas e duradouras de Aristóteles, ao menos no que tange aos fundamentos do pensamento científico, seja a sua doutrina das quatro causas. Embora pretendamos explorar esta e outras inúmeras contribuições do Estagirita em futuros posts, a ideia, no momento, é investigar um conceito particular que foi progressivamente "desidratado" após a Revolução Científica: a noção de forma. O abandono deste princípio fundamental resultou em enormes dificuldades para o cientista contemporâneo raciocinar sobre os eventos naturais de maneira mais ordenada, hierárquica e unitária.
A Essência das Coisas: O Conceito Clássico de Forma
Quando falamos em "forma" hoje, geralmente pensamos na figura ou no delineamento externo de um objeto. Contudo, o conceito clássico de forma (do grego morfê) é infinitamente mais completo e significativo. Na perspectiva aristotélico-tomista, a forma é aquilo que faz uma coisa ser o que ela é em sua essência (quid est). Ela não é um mero acidente, mas o princípio determinante que estrutura a matéria e define o modo de ser de uma coisa e, consequentemente, o seu modo de operar (modus operandi) e de se transformar.
Ou seja, algo é como é e age de uma determinada maneira em função de sua "forma natural". Este princípio, que Santo Tomás de Aquino sintetizou no adágio "o agir segue o ser" (agere sequitur esse), é tão intuitivo que o aplicamos constantemente sem nos darmos conta. Se, por um acaso, nos deparamos com um jabuti no alto de uma árvore, nossa reação imediata não é de admiração pela sua inesperada habilidade, mas a de inferir que alguém o colocou lá. Por quê? Porque intuímos que falta ao jabuti a forma – a estrutura, as potências e a disposição intrínseca – que o capacitaria a escalar uma árvore.
Da mesma maneira, se uma substância é alterada a ponto de perder suas propriedades essenciais, dizemos que foi "desnaturada" – um jargão comum na química que, em sua raiz, significa exatamente isso: privar algo de sua forma natural. Este conceito de forma guarda uma relação direta com a ideia de propósito ou finalidade (telos), outro elemento fundamental que foi sendo esvaziado na ciência moderna, por mais evidente que seja na natureza: desde a estrutura de um átomo de hidrogênio até o corpo de um tubarão, toda forma parece ordenada a um fim e a um modo de operação específico.
A Fragmentação Moderna: Quando a Matéria se Sobrepõe à Forma
Todas essas ideias, em certo sentido, parecem óbvias. Onde, então, perdemos essa perspectiva? Este preceito de uma unidade formal foi perdendo sua força em função do crescente enfoque analítico do estudo científico. O método moderno, de forma muito pertinente e eficaz, separa as partes para estudá-las melhor, mas muitas vezes se esquece de "juntá-las novamente", como alguém que desmonta uma torradeira para ver como funciona, mas depois se vê incapaz de montá-la de volta.
A ciência moderna, profundamente influenciada pelas sofisticadas descobertas das estruturas elementares da matéria, especialmente sob o olhar da física quântica, fixou-se na questão do "de que é feito?" (uma pergunta extremamente válida, diga-se de passagem) em detrimento da pergunta "por que é deste jeito?". Esta última é uma questão que diz mais respeito à forma, que é a depositária da informação, da estrutura e do propósito na natureza. Assim, a matéria foi ganhando preeminência sobre a forma e, de maneira contrária à ordem lógica até então vigente, a parte passou a tentar explicar o todo.
Como isso afeta o pensamento científico na prática? Começamos a pensar na célula, por exemplo, como um mero agregado de partes: membrana, núcleo, cromossomos, mitocôndrias, etc. Da mesma maneira, pensamos na água como apenas dois átomos de hidrogênio covalentemente ligados a um de oxigênio. Esta visão está errada? Evidentemente que não, mas sua natureza essencialmente analítica e não sintética incorre em uma supersimplificação de algo maior. Hidrogênio e oxigênio, em si, não são água; apenas quando unidos sob uma nova unidade formal eles criam um "algo novo" cujas propriedades (como a de saciar a sede) transcendem completamente as propriedades de seus componentes isolados. Da mesma forma, um amontoado de organelas não é uma célula. É a unidade formal do todo que traz consigo a natureza operacional e a essência de uma coisa.
Conclusão: Por uma Ciência que Reintegra Forma e Matéria
A grande lição da perspectiva clássica é que o todo não pode ser desmembrado em suas partes sem ser "desnaturado", ou seja, sem deixar de ser o que é para se tornar um mero agregado de matéria. A estrutura de uma célula, assim como os componentes de um relógio, não existe por si mesma; cada parte existe e só faz sentido em função de uma unidade funcional e formal. Embora cada componente da célula seja, em si mesmo, uma forma (como uma pequena engrenagem do relógio também o é), no que diz respeito ao seu propósito final como parte de um todo maior (o relógio ou a célula), este componente age como "matéria" e está, portanto, subordinado à estrutura total.
Compreender este princípio de ordem, hierarquia e harmonia na natureza não significa abandonar o método analítico, mas reintegrá-lo em uma visão mais completa e sábia. Significa entender que a análise das partes só atinge seu pleno potencial quando é seguida pela síntese que busca compreender o todo formal.
É importante notar que esta perda da noção de forma unitária, esta primazia da parte sobre o todo, não se restringiu aos muros dos laboratórios e das universidades. Pelo contrário, ela parece ter-se tornado um modus operandi do pensamento moderno em geral, afetando a nossa capacidade de compreender a realidade nas suas diversas facetas – da arte à política, da ética à vida social. Pretendemos explorar os desdobramentos desta questão num futuro post, analisando como a reintegração da forma e da matéria pode oferecer chaves de leitura não apenas para a ciência, mas para os desafios do nosso tempo.
Para o cientista, o pesquisador e o estudante, adotar essa perspectiva expande a forma de enxergar a realidade, mesmo no experimento mais detalhado que se conduza. Permite fazer perguntas mais profundas, buscar conexões mais amplas e, em última análise, praticar uma ciência que não apenas descreve fragmentos da realidade, mas que busca ativamente compreender a unidade inteligível que os conecta. Resgatar a noção de forma é, portanto, um passo fundamental para uma ciência mais integral, conectada e, em última instância, mais verdadeira.
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